sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Aids - um trava - língua


- A enfermeira ligou e pediu pra você dar
uma chegadinha no ambulatório,
a doutora quer falar com você...
É urgente...

São Paulo, 04 de fevereiro de 1993

18 anos de soropositividade e eu fui fazer uma pesquisa pra me atualizar e escrever um texto legal pra vocês, divagador prolixo que sou não sei se escrevo sobre novos medicamentos, efeitos colaterais, amores passados ou sentimentos presentes, faço uma salada mista pois adoro hífens e não sei mais quando devo usá-los. Reforma-gramatical.

 

Soube então que existem atualmente 18 medicamentos pra controle da infecção por HIV e muitos deles eu desconhecia. Como é boa a ignorância, acha que é novidade algo datado de mais de 20 meses. Estou há 4 anos com a mesma combinação, a terceira desde 2006, composta pelos maravilhoso DDI última geração + 3TC + Tenofovir + Kaletra (que é o conjugado do lopinavir com ritonavir, e que durante um tempão aqui no Brasil era aquele bala-de-goma que soltava o intestino, resto de produção quando lá fora já usavam o Meltrex).

 

Sigo feliz quase sem efeitos colaterais.

 

São 5 drogas ao todo que fazem um excelente trabalho pela minha preservação.

 

Antes desses esplendores que me brotam Vida fiquei 16 meses num “drugs holiday” necessário e perigoso, brigando com a minha médica no argumento de que já me bastava de antiretroviral, afinal já os tomava por 7 anos.

 

Experiência ímpar que eu não recomendo; Deuses que Somos – tão somente pois somos frágeis e vendavais nos derrubam de verdade, até mulher maravilha tomba. Um dia explico melhor.  Caia, mas caia com classe. Precisava viver isso como precisei acreditar década antes que poderia emplacar 10, 20, 30, 40 anos “com-vivendo” com hiv.


 

A combinação anterior me castigou muito. 3TC + D4T + Efavirenz... O Efa, como chamamos, nas primeiras semanas te deixa com uma ressaca matinal das brabas, tem que tomar ao se deitar pois durante o dia te apaga. Na primeira manhã após a primeira dose acordei com a sensação de ter tomado um engradado de cerveja na véspera, levantei e tonto me amparei na parede, foram uns 15 minutos pra aceitar que eu era bípede.

 

Não caí por ter sido alertado de que isso iria acontecer por semanas.


 

Fora os pesadelos que me faziam ter a sensação de estar pulando pela janela do décimo-terceiro andar. Um horror. Depois de um tempão você se acostuma, mas quando se livra dessas sensações a Vida fica bonita de novo.


 

E como tem aquele lance de dizer que se pular uma dose o vírus cria resistência a gente acaba tendo receio e toma a porcariada mesmo assim, quase sob coação. Caxias, todo dia sem falhar nenhum...

 

Vamos incluir aqui também a temível lipodistrofia que deixou a região dos meus joelhos bem secas e só não me deixou com pança porque faço abdominal compulsivamente e fui pra academia minimizar o estrago. Além do rosto que ficou chupado, mas nada que alguns mililitros de metacrilato não tenham corrigido, custou caro mas valeu o investimento. Leãozinho não. Continuo belo, ainda que um tiozinho...

 

Hoje o governo banca essa intervenção, inclusive com remoção da corcova de camelo (que eu por sorte ou DNA bom não tive).


 

Foram 4 anos bem difíceis, de 2000 a 2004. Nenhuma saudade daqueles dias. Juntou uma separação bem traumática, crises das mais profundas e aquelas drogas que só me deprimiram mais, o jogar a toalha no emprego, a ida pra Espanha, os erros no retorno ao Brasil, prejuízos financeiros, ficou tudo fora da órbita.

 

Anterior a essa vivência difícil, a primeira combinação foi o AZT + DDI + Crixivan, já entrei no esquema de coquetel logo de cara.

 

1997, o ano que mudou as nossas Vidas, do lado de cá e do lado daí da Linha do Equador. 

 

Tirando que o AZT me deixou acinzentado (quando para a cor quase volta), que o DDI era um bolachão maior que 3 moedas de R$ 1 juntas com gosto de cimento branco que tinha que mastigar em jejum, e que o Crixivan me fez um cálculo renal justamente quando viajava pra Visconde de Mauá com o namorido, Amor dessa Vida, durante uma briga, fui feliz pois me devolveram à Vida.

 

Aqui cito por afeto o mérito do médico que me atendeu lá naquele consultório da Frei Caneca em 1997. Depois de eu desmaiar na fila da triagem, quando ele me disse que eu iniciaria o tratamento na segunda-feira, logo após fazer meus exames, como quem te sugere pagar um almoço.

 

O mico total desse tratamento foi quando cheguei a Fundação Zerbini, que é vinculada ao Hospital das Clínicas, e desmaiei. Eu tinha abandonado o acompanhamento 4 anos antes depois que uma médica escrota me disse que eu teria no máximo 2 anos de Vida.

 

Não quis saber de usar o convênio, pois tinhas boas referências do sistema público, e encarei uma fila nem tão grande assim. Mas a sensação de estar me expondo – Um doente de AIDS agoniza em praça pública, logo eu tão mauricinho - foi tão grande, eu estava tão frágil que a minha voz secou, eu fiquei tonto, a pressão caiu e acordei minutos depois numa maca com uma enfermeira acarinhando a minha mão, me dizendo que haveria ainda muita lenha pra queimar e que eu estava muito bem.

 

- É só confiar no médico, tomar os medicamentos que tudo vai ficar bem. Você é muito lindo e há muita lenha ainda pra queimar. Tem gente que chega aqui bem ruinzinho mas semanas depois está bem de novo.


 

Por acaso ela trabalha lá até hoje e nosso sorriso companheiro não há o que pague, faço questão de tomar as minhas vacinas ou injeções sempre com ela.


 

Já em consulta com o Dr. Luis Gonzaga iniciamos com uma tentativa de terapia dupla, a recomendação do Ministério da Saúde era de só dar o “coquetel” para quem estivesse muito mal. Não era ainda o meu caso, embora eu estivesse uns 10kg abaixo do meu peso. Era o AZT + DDc e só.

 

O DDc era traiçoeiro e me deu queda acentuada de plaquetas, o sangue fica fino e tinha gente que morria de hemorragia com dias de tratamento. Me deu sangramento de gengiva no segundo dia, corri ao médico e ele rapidinho trocou pela bolachonha de pedra do DDI e o famigerado AZT.

 

Era o que tinha pra ontem, coração.

 

Pegava ou largava.

 

O D4T e o 3TC estavam chegando no Brasil, na época rolos e mais rolos com o papo de patente, o Brasil ainda não tinha se tornado referência mundial do que é um tratamento digno a uma epidemia dessas proporções.

 

A AIDS ainda hoje gera fortunas pros laboratórios e quem puder pagar paga, leia-se europeus e americanos e governo brasileiro. Quem não puder que morra, ninguém nos laboratórios se importa se 70% da população adulta do Zâmbia vai morrer de AIDS antes dos 40 anos, onde uma parcela insignificante tem acesso ao básico e se morre de fome, febre-amarela e malária também.

 

Por esses dias, assistindo uma matéria sobre AIDS na TV, revi uma amiga querida, a Nair, que foi a primeira pessoa a conseguir na Justiça o direito a ter o medicamento pago pelo Estado. Ela dizia que sem aqueles remédios morreria. Isso foi em 1996.

 

Seu desespero salvou milhões.

 

Eu sou um deles. E o Serra malufiou os louros...

 

Antes de 1996, desde 1993, as coisas pioravam mas eu me recusava a enxergar, ou enxergava e fingia que nem eu e nem ninguém via aquilo. Tem fases em que mentir pra si mesmo é a melhor e mais necessária verdade que se deve permitir. Sempre fui magro, mas fiquei magrinho, pálido, sem luz, tristinho, medroso, acuado, bomba-relógio-viral prestes a entrar em colapso. Retorno de Saturno, estava emplacando os 30 anos de idade, muita provação.

 

- Chi, será que aquela filha-da-puta daquela médica escrota estava certa, eu estou morrendo!??

 

Eu vi a cara da morte e ela estava viva. Viva... Passou, camarada, passou.


 

Rapaziada, moçada, falei sobre as drogas da minha Vida, defeitos colaterais, amores e sentimentos, gratidão, alegria e no quanto é bom estar aqui e poder me lembrar disso tudo. Além dessa lista enorme há mais algumas maravilhas que eu ainda não tomei. Posso precisar delas algum dia e émuito bom saber que há opções e que outras surgirão até que criem um chiclete que você masca por 15 minutos e cura a AIDS de vez.

 

Enquanto não chega o tal chiclete se alegra com o que tem, quando precisar trocar faz um exame de genotipagem, vê o que vai ser melhor e toma sorrindo sempre na fé.

 

Vou morre velhinho, lúcido, uns 90 anos, lindo que nem uma múmia.

 

Mais umas 5 décadas, no mínimo.

 

Agente merece.

 

Tem ainda o Abacavir, o Emtriva, o Delavirdina, o Etravirina, o Nevirapina ou Viramune, o Amprenavir, o Fosamprenavir, o Atazanavir, o Darunavir. O Aluvia. O Ritonavir, o Saquinavir, o Tipranavir, o Enfuvirtida ou Fuzeon, o Maraviroc e o Raltegravir.

 

Quer trava-língua mais motivador que esse?  

 

 

Eu andei perdendo alguns amigos pra aids recentemente.

 

Inclusive um menino lindo de 18 anos que se infectou aos 14 e não ligou.

 

Mesmo com tudo isso, medicamentos e informação, muitos preferem não saber.

 

Pra muitos a aids não existe.

 

Será que existe mesmo?


Escrito por Tiago às 00:00:01

Fonte: MIX Brasil 

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