segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O amor não obedece regras doutrinárias

de Flávio Alves

                                                               Na foto o casal Rodrigo e Alisson /Crédito da imagem: Márcio Dantas

Já disse aqui no Canhotas que não gosto de falar de religião, no texto A César o que é de César disse que já perdi muito em razão de diferenças religiosas, portanto, evitava participar de qualquer debate que enveredasse para uma discussão que tivesse a Bíblia ou alguma divindade como fundamento.
Compartilhei aqui que perdi amigos, que tive problemas na família, entre outras coisas por causa de religião, e hoje, refletindo melhor, tenho a convicção de que perdi parte importante da minha vida.
Resolvi voltar ao assunto, pois, há cerca de um mês, um casal de pastores resolveu me converter, e ao verem que não teriam mais uma ovelha no rebanho passaram a me desqualificar, contestar minhas publicações nas redes sociais e pregar contra a homossexualidade e contra o caráter laico do Estado Brasileiro.
Tentei fazer o debate, disse que respeitava o direito deles de professar uma fé, de ter uma religião, mas que exigia respeito ao meu direito de não ter religião nenhuma, inclusive de não ser cristão, não adiantou, logo, volto ao tema.
Nasci em uma família de tradição católica, ou seja, a religião, os ritos, a liturgia sempre fizeram parte da minha vida desde as minhas lembranças mais antigas. Meus pais participavam de tudo na igreja, por diversas vezes dormi em bancos de igreja durante as missas e encontros. Fui batizado, fiz a primeira comunhão, tudo certinho, conforme a igreja exigia. Deixei o catolicismo antes de me crismar, eu devia ter uns 18 anos.
            Sempre tive um conflito imenso, sempre me senti diferente e ser diferente pesava muito na minha relação com a Igreja. Minha vida religiosa era falsa, minha fé era torta, eu vivia em um ambiente que era hostil ao que eu realmente sou, e vivia me escondendo, morrendo de medo de ser descoberto. A idéia do Deus onipresente, onisciente e onipotente, me apavorava e me enchia de culpa. Deus sabia que eu era falso. Pânico!
            Me lembro de uma aula de catecismo quem que a professora dizia que tudo o que acontece no mundo está na Bíblia, que Deus previa tudo. Aí a catequista se vira para o grupo e diz: “Deus previu até a existência das bichas, até as bichas estão na Bíblia, eram os eunucos!”, depois disse que Deus destruiu Sodoma e Gomorra por causa das “bichas”, ou seja, o negócio era sério.
Mais medo, tive fantasias horríveis sobre a homossexualidade, morria de medo de me tornar uma “bicha”, hoje dou risada disso.
Rezei muito, implorei para Deus para não ser assim, fiz promessa, me penitenciei. Participava de grupos de oração, e pedia muito para deixar de ser gay. Sofria demais com isso, levava uma vida dupla, me escondia e começava a concluir que minha vida religiosa era uma grande farsa.
Um dia uma possibilidade de abriu, me fizeram a proposta de entrar para o seminário, ou seja, uma saída honrosa para quem sabia que nunca teria uma vida heterossexual. Passei a justificar meu desinteresse por namoros com mulheres a partir de minha vocação sacerdotal.
Lógico que essa ideia não foi muito longe, não aconteceu, pois o peso da máscara que eu carregava me cansou, rompi com a Igreja por não ver mais sentido em tudo aquilo que era dito ali, por não me sentir mais parte daquele espaço, e por ter a consciência de que nunca seria aceito como sou por aqueles que se diziam meus irmãos.
Como disse, o medo de ser descoberto sempre me perseguiu. Esse temor me acompanhou durante muito tempo, e o medo de ser quem eu realmente sou, de me aceitar, gostar de mim exatamente como sou, me perseguiu durante anos, mesmo depois de ter saído da Igreja. Palavras como aberração, abominação, pecador, viraram sinônimos da maneira como eu me via.
Não quero com este texto dizer que a religião é ruim, que as LGBTs não devem acreditar em nada, ou que devem deixar de freqüentar suas comunidades. Ou ainda, que as experiências religiosas são ruins para todas as pessoas. Não são! Foi ruim para mim!
Liberdade e Pluralidade Religiosas são direitos!
Hoje existem comunidades dirigidas aos homossexuais, algumas congregações vêm ampliando sua compreensão de mundo e incluindo homossexuais. Existem grupos dentro de igrejas tradicionais e novas denominações que atuam pelo fim da discriminação e combatem o preconceito, que acreditam ser possível conciliar uma boa vida religiosa com o que realmente se é. A Diversidade Católica e aIgreja Crista Contemporânea são exemplos de trabalho religioso sério voltado para a população LGBT. Sem contar as comunidades espíritas e as religiões de matriz africana que sempre foram mais abertas à participação dos homossexuais.
Falando de mim, hoje lido de uma maneira mais filosófica com a minha religiosidade, acredito na humanidade, em valores humanos como a solidariedade, a honestidade, a compaixão, a amizade, o amor, e faço o possível para exercitar e dar sentido a este lado humano.
Tento até hoje rever meus valores, me livrar das amarras que a religião me colocou, tento resignificar o que aprendi no meu tempo de vivência religiosa, dar novos sentidos e me humanizar cada vez mais.
Acredito principalmente no amor, sentimento este que quando surge é incondicional, sem amarras e que não obedece a nenhuma regra doutrinária. E em não havendo regras para amar, amamos como podemos, amamos como somos, amamos livremente.
Penso que o amor é essencialmente cuidado. Conforme a definição do teólogo Leonardo Boff,CUIDADO significa: "[...] desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Como dizíamos, estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude (...) a atitude de cuidado pode provocar preocupação, inquietação e sentido de responsabilidade"  e "por sua própria natureza, cuidado inclui pois duas significações básicas, intimamente ligadas entre si. A primeira, atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para o outro. A segunda de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que tem cuidado se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro." (BOFF, 1999, p. 91-92).
E é assim que pretendo levar minha “religiosidade”, me dedicando ao meu próximo, cuidando daqueles que me são caros, respeitando as diferenças e participando da luta por mais democracia, por um pais que seja justo e garanta condições de vida digna a todos os brasileiros.
Isso passa por combater pessoas ou grupos que se utilizem da religião ou de dogmas religiosos para sustentar preconceitos, oprimir pessoas, defender seu direito de discriminar, agir politicamente e afrontar nossa Constituição.
Meu país virou minha religião.
E hoje só tenho a certeza de que vou amar sem regras e dar combate a todo e qualquer tipo de discriminação e preconceito e a toda forma de opressão. Simples assim!

Referência:

BOFF, L.; Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1999.

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